Quem melhor para falar sobre Lilia?
Ela mesma e se define: “Sou composta por fragmentos de outras, que vieram antes de mim, preparando o caminho. E espero também contribuir na construção e adequação dessa estrada por onde andamos ainda com cautelas, receios. Estrada que será percorrida por muitas. Procuro semear utilidades para acelerar o passo das próximas caminhantes, afastar obstáculos, alargar a passagem. Sinto que minha voz vai soando um pouco mais firme, menos tímida, à medida em que avanço. Escrever torna o volume mais potente, o tom mais límpido. Coloco minha voz à disposição das que foram silenciadas. Emudecidas. Tento resgatar o que foi dito com os olhos, com lágrimas. Estou aqui, ainda, afinal. A serviço. Na missão!”
Em feliz coincidência a conheci virtualmente no segundo semestre de 2021, no curso da Universidade das Quebradas, que conectou mulheres das múltiplas periferias brasileiras. Não sei quem amei primeiro. Seus textos ou ela mesma. Ainda guardo impacto da leitura de “Entre Roseiras e Jabutis” e “Vó”, contos de Perifobia, da oficina de leitura e escrita.
Certa noite, ela participou da aula saindo do plantão, pura generosidade! Outra feita nos brindou com sua companhia, via celular após o trabalho, indo para casa, revelando seu processo de escrita. Voz baixa e firme ao expressar sentimentos, me impressionou. Guardei Heloisa Buarque falando da genialidade e delicadeza dos “caquinhos vermelhos”. As criações das redes afetivas ficaram a cargo de Alana Francisca, Drica Madeira e Rozzi Brasil as oficineiras. Tempos depois armei-me de ousadia e me propus fazer um texto sobre e com ela.
A romancista Lilia Guerra é autora de Amor Avenida (2014), da coletânea de contos Perifobia (2018), do romance Rua do Larguinho e outros descaminhos (2021), de Novelas, escritas para o rádio (2022), volume 1, 2,3, de Crônicas para colorir a cidade (2022), e O céu para os bastardos (2023) é seu mais recente romance.
Sua escrita exuberante é inspirada na zona leste de São Paulo, em cidade Tiradentes, espelhando em suas escrevivências sua sensibilidade de enfermeira negra do SUS, onde tudo se potencializa em vibrante pluralidade que aponta para as silenciadas e invisibilizadas.
O coração de Lilia Guerra pulsa vibrante nas margens, abrindo-se para os trabalhadores dos becos, morros, favelas, comunidades periféricas e conjuntos habitacionais, onde habita. Confessa sua ‘guerra’ interna de onde sente as cores, vozes, dores, músicas, danças, alegrias e também injustiças da vida de diaristas, domésticas, babás, patroas, manicures, cabeleireiras, comerciantes, mães solo, casadas, viúvas, estudantes, cozinheiras, enfermeiras, professoras, compondo um mosaico ora antropológico, ora sociológico de cosmovisão lilianica ou seria lilianista?
Em contos e romance entrecruzam-se experiências das mulheres negras de sua família e de inúmeras mulheres das quebradas. Sensitiva, ela se dissolve no que ouve, observa, acolhe e conhece das-nas ruas, trens, ônibus, periferias, cozinhas e no serviço público. Atendendo aos sonhos da mãe torna-se literatura, destilando ancestralidade, sentimentos de quem caminha ao lado de outras afrodescendentes, em dores perenes que se eternizam em suas escritas.
Com a avó aprendeu amar a música, com a tia ouvia belas histórias da vida, da novela, do cinema, com a mãe conheceu os livros, os romances. A grande sensibilidade destas raízes femininas, vocacionou Lilia para manifestar nas letras, a sensibilidade das potencias adormecidas na ancestralidade. Ela rememora:
“Minha avó, Maria Júlia, não era alfabetizada. Ainda assim, consumia cultura nos formatos mais variados, em grande quantidade. E incentivava a todos os que a rodeavam a servirem-se também. Com ela, aprendi a amar a música. Minha tia, Júlia Maria, irmã mais velha de minha mãe, a segunda autoridade na hierarquia de nossa casa administrada exclusivamente por mulheres, me ensinou a apreciar boas histórias. Semialfabetizada, era amante de novelas impressas, de rádio e, mais tarde das televisionadas. E de cinema. Também decalcou em mim seus gostos. Ana Júlia, minha mãe estudou um pouco. O suficiente para se tornar uma leitora frequente e apaixonada. E me apresentou os livros como objetos essenciais. Introduziu a leitura em minha vida como hábito natural da rotina. Ao longo dos anos, desenvolvi algumas atividades na região onde moro, como apoio voluntário a alfabetização. Sempre desejei ardentemente que oficinas e atividades culturais contemplassem a minha vizinhança.
À certa altura, entendi que uma maneira possivelmente eficaz de me inteirar com o coletivo seria através da escrita. E a matéria-prima que utilizo em meus escritos é exatamente a que herdei das mulheres que me educaram. Negras, trabalhadoras domésticas. Guardiãs da ancestralidade. Partilharam comigo tudo o que possuíam. Sobretudo, o senso de coletividade. Me fizeram compreender que coisas boas só fazem sentido se forem compartilhadas. ”
Tal como a ostra que transforma o corpo estranho em uma pérola, ao cobri-lo com camadas de madrepérola, vejo várias camadas nos textos de Lilia que traduzem dor, pela indignação de mazelas sociais e econômicas. Assim somos premiados com a raridade dos contos, a beleza dos romances que de lágrimas, viram gotas, que viram pérolas que são lindo colar, brincos, bracelete a nos enriquecer com inspirações, cenários, personagens e tramas à moda Lilia.
Com a voz serena e aveludada, reconecta-se ao que ouve dos grandes músicos e compositoras do samba, inspira-se nos fragmentos das múltiplas narrativas negras e recompõe esses sentimentos e emoções em suas criações literárias. Seus escritos são obras que tornam as mulheres negras visíveis, recolocando-as ao nível das imortais, estão todas ascencionadas como nos itans.
Encerro esse texto parafraseado Lilia “a serviço, e na missão” com ela tudo fica mais fácil, sinto-me segura. Obrigada por estar comigo nesta.